Os santos, quando santos de fato, o são sem o
saber. Na verdade, sabem que não são santos. São só gente que faz o bem nas
oportunidades em que a vida lhes permite essa escolha.
Meu avô tinha várias dessas histórias. Meu pai
também. Ele não as conta, às vezes ele comenta, não é que ele queira que eu não
saiba ou coisa e tal. Simplesmente não é algo especial. Precisavam, ajudou.
Fio, um menino, trabalhando para ele, no açougue,
foi pego no flagra, esculhambando a bicicleta de papai. Ele então compra uma
bicicleta para Fio e vai descontando de seu salário aos poucos... Quando Fio se
casou, papai comprou sua mobília, e ele foi pagando aos poucos, como na
bicicleta. Houve muita coisa boa. Fio ganhou um pai. Papai ganhou um amigo.
Esses dias, fiz um Ossobuco, um corte da canela do
boi, cheio de tutano, como uma rabada, novidade para meus pais. Papai lembrou
do tempo de açougue novamente, quando uma fila se formava, de gente pobre,
esperando receber as partes menos nobres do boi desossado. Me lembrei
instantaneamente das sacolas entregues a aquele pessoal esquisito (para uma
criança de seis anos... E alguns eram mesmo). Na verdade, tem um monte de
homens barbados que tratam meu pai com a maior gentileza... Os
meninos-ajudantes do açougue, todos eles.
Há uns anos atrás, ele contratou um rapaz, para
ajudá-lo no sítio. Colocou o rapaz na casa, comprou a mobília para ele ir
pagando aos poucos... Nem sempre se paga o bem com o bem. O rapaz foi embora,
carregou a mobília e papai teve de pagá-la. De resto, sofremos anos com roubos
de caneiros, ferramentas, celas, etc dele e das pessoas que ele trazia para nos
assaltar. Pelo menos parou, depois de o pegarmos no flagra e ameaça-lo de denuncia
a polícia. Não vejo papai reclamando
dele, nunca vi, o importante é que parou de nos amolar.
Nos anos 80, com a sangria das finanças
brasileira, papai quebrou, e passamos a viver com muito pouco, sendo ajudados,
algumas vezes. Não pude mais ver muitas atitudes de generosidade de meu pai,
como eu ouço de meu avô, a não ser no carinho que os vizinhos do sitio da
Guarnieri compartilhavam com ele, e depois, na sua capacidade de conviver com
vizinhos de difícil trato. De fato, a medida que seu olho vai sendo treinado
para o que é a vida, essas bondades sutis vão se descortinando. São as simples
regras da generosidade, do perdão, do andar humilde, do olhar bom, na
receptividade com os que no visitavam, na preferência por sofrer o dolo a
ganhar na marra.
Meu pai tem seus erros e acertos. Não entende
algumas coisas na vida, como o fato de dificuldades financeiras o perseguirem,
sempre. Gostaria de ter tido uma sorte melhor. Eu entendo ele. Queria que fosse
menos triste. Mas sei que é grato a Deus ao que lhe é mais precioso: o fato de
que eu e meu irmão nos tornamos Homens, homens que querem acertar, que buscam o
bem.
Minha filha outro dia disse que o Lucas (meu
caçula) era seu herói, por ele ter achado algum brinquedo dela. Ele a corrigiu:
- Irmã, eu e papai somos heróis.
Foi a primeira vez que eu o vi dizendo isso. E,
por incrível que pareça, é diferente receber isso dele, um menino. É como se eu
me visse nele, e me realizasse no fato de me ver falando a mesma coisa quando
criança.
Eu adorava meu pai. Ele me levava de bicicleta na
escola. Ele era bonitão, eu até tinha ciúmes dele. Nós ficamos todos abraçados
quando fazia frio, vendo a TV, ou então fazendo exercícios físicos, alguns que
ele tinha aprendido na aeronáutica. Ele sabia resolver os conflitos em casa
entre eu e o Marcelo. Era calmo e não nos batia. Eu gostava de vê-lo jogar
bola, foi um dos grandes zagueiros da cidade, apesar de seus 1,69. Não dava
ponta-pés, não errava passes, cabeceava muito bem. Quando jogamos bola juntos,
depois, fiquei impressionado com a velocidade de raciocínio de toque e
colocação. No açougue, sempre atendia as pessoas com um sorriso na face.
Na vida, com o tempo, descobrimos os defeitos de
nossos pais, o meu teve e tem os seus. Eles vão deixando de ser nossos heróis.
Depois descobrimos esses defeitos, e outros também, em nós, e vamos nos
desiludindo com a existência. Até, que passadas as ilusões, começamos a
descobrir outras qualidades, a entender os erros, a entender a vida...
Luísa, Lucas, saibam: seu avô também é um herói,
meu herói.
Macaé, alguns dias depois de comemorarmos os 62
anos de papai.
Leo
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